quinta-feira, 20 de junho de 2013

A Quarta



Tchaikowsky, Quarta Sinfonia. Theatro São Pedro, 18 de junho de 2013. Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. Maestro Shinik Hahm (Coréia-EUA), cuja reputação extra-palcos apresenta algumas manchas (amplamente repercutidas pelo crítico/blogueiro Norman Lebrecht); mas que aqui tem feito um trabalho extraordinário, e além disso, veio mexer positivamente com os brios dos músicos, tentar fazer-nos resgatar o orgulho e postura profissionais atualmente um pouco debilitados.


O complexo 1º movimento da Sinfonia começou bem - a temida introdução dos metais em fortissimo e uníssono descoberto foi provavelmente a melhor da história da OSPA. A escolha do andamento para o longo e intrincado Moderato con Anima, bastante generosa por assim dizer, teria o potencial de prejudicar a continuidade, retirar tensão musical, produzir monotonia - mas nada disso aconteceu, na minha opinião. O fraseado, trabalhado com muito esmero durante os ensaios, brotou e desabrochou no palco do TSP: nas madeiras com clareza, nas cordas com calor e coesão, nos metais com gravidade; em todos com qualidade e afinação. Dirigindo de memória, o regente entregava-se totalmente ao momento, ajudando os músicos a fazermos o mesmo.




Em momentos como esse coisas um pouco estranhas podem acontecer.


De repente - ainda estamos no imenso 1º mov. - uma determinada frase musical ressoa de maneira particularmente forte dentro de mim. Essa frase parecia ganhar vida e adquirir uma voz, e essa voz parecia revelar o sentido emocional exato daquela frase, no momento em que foi concebida na mente de Tchaikowsky.

Mais adiante - mais ou menos a esta altura do 1º mov. -


...vislumbro uma paisagem rural; o cotidiano de aldeões russos no século XIX. Os aromas desse lugar imaginado me chegam - literalmente - ao olfato (!). Nesse instante, tempo e espaço são relativizados; as alegrias e tristezas, as belezas e as agruras das vidas dessas pessoas de outrora e alhures são tbém as minhas alegrias e tristezas, são tbém as belezas e agruras de aqui e de agora.


O 3º movimento - Scherzo - me proporciona uma trivial satisfação de músico pequeno: logro fazer soar com clareza todo o conteúdo desta difícil (mas não a mais difícil) página da sinfonia.



Durante o Finale - desafiador, virtuosístico, heróico - de súbito, um novo insight, de um outro tipo.

Primeiro, ecoa a lembrança de uma frase proferida pelo amigo Beto Flach (durante uma manifestação na Restinga, a Pedalada do Davi), que foi mais ou menos assim:

"…um dia, cada um de nós vai dar a última pedalada…"

…e então, fitando o papel amarelado, essa partitura gasta por décadas de uso, enquanto conto as pausas e espero minha próxima entrada, espero a próxima frase fulgurante deste Finale, fica muito claro que

                                          um dia

                                                                  um certo som (de flauta)

                                                                                                             vai ser o derradeiro.


Bem antes disso (espero), vou tocar a Quarta pela última vez.

Será hoje?!

Nesse momento torço para que esta não seja a minha última Quarta; não tanto por apego, e mais por brio profissional: pois sinto o agradável dever de tocá-la com ainda mais brilho, um mais próximo da inatingível perfeição. Esta vez está sendo a melhor da minha provinciana carreira, mas sei que ainda é possível melhorar mais.




 


 Um dia depois, especulo: a alta dificuldade técnica de certas composições não será justamente um componente importante do seu universo emocional e expressivo? Teria essa quase impossibilidade de tocar 100% limpo e "perfeito" a função de nos ajudar a manter  tensão musical, a intensidade da experiência, o "não-deixar-cair-a-peteca" do início ao fim?

Não tenho a resposta para essa pergunta, mas uma coisa acho que posso afirmar: ontem não fomos perfeitos, mas a peteca não caiu; passeou pelos ares, de mão em mão, durante mais de 40 minutos.




p.s.: as 2 primeiras fotos são de autoria do Augusto Maurer


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