quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Verdade, Morte & Transfiguração - um dinossauro (eu) na contramão



Existe verdade em música? Melhor dizendo, existe verdade em interpretação musical?

Verdade, no sentido de que: 

uma certa maneira de realizar certa música seja intrinsicamente mais verdadeira do que outra; mais conectada com a tradição (= o sentir/pensar particular de um certo espaço-tempo) na qual foi gerada; conectada de maneira viva; mais capaz de provocar no ouvinte impressões/sentimentos/pensamentos que remetem ao mundo de energias e motivações do qual o compositor se alimentou, e sem o qual aquela música não existiria, porque não teria motivo para existir.


Existe isso?

Sinceramente - mesmo - não sei.

Mas vivo como se soubesse, e como se a resposta para a pergunta acima fosse um inequívoco Sim!, e não poderia exercer esta profissão se assim não pensasse/sentisse, porque de outra forma ela não teria sentido. 

Existe verdade em música; o que não quer dizer que entrar em contato com essa verdade seja uma tarefa simples; e muito menos, que existam "donos da verdade". Não vivemos no espaço-tempo no qual viveu Quantz, para quem "das wahre gute Geschmack" (o verdadeiro bom-gosto musical) era algo palpável, quase óbvio. Hoje dizemos: "gosto não se discute"; e ficamos orgulhosos do perfume democrático que exala dessa frase. 

Teresa Berganza esteve uma vez em Porto Alegre - seu lindo cabelo já estava grisalho (coisa que ela não escondia), seu instrumento vocal já não era tudo aquilo - e interpretou em um recital no TSP a Habanera da Carmen de Bizet. Lembro como se fosse hoje - e não por ter excelente memória, que não é o caso - aquela dama no centro do palco - o qual não continha outro elemento a não ser um piano, um pianista, e ela - que com um vestido rodado, uma classe indescritível, uma economia de gestos impressionante, e um poder de sugestão quase sobrenatural, nos fazia sentir a volatilidade das paixões e a perfídia de Carmen, e nos fazia enxergar - não apenas Carmen, mas toda a cena, a praça, a tensão, os figurantes…

Este ano tivemos a oportunidade de ouvir um grande violinista - Maxim Fedotov - capaz de nos transportar para o universo de Tchaikovsky, e de inspirar, motivar e influenciar meu estudo de flauta durante semanas.

Nesta última terça-feira, tivemos Carmen (traduzida por Sarasate), e tivemos violino, e tivemos grande virtuosismo. Colegas, regente, platéia foram unânimes em louvar as virtudes de nossa solista da noite, Rachel Barton Pine.


É como se o fazer musical de Teresa Berganza e de Maxim Fedotov, de um lado, e o o fazer musical de Rachel, de outro, viessem de planetas diferentes.

Sinto-me até encabulado em manifestar opinião tão solitária; afinal de contas, Rachel é brilhante violinista, tem linda sonoridade, é muito carismática, e obviamente não carece de minha aprovação. 

Mais não digo, porque não saberia como pôr em palavras, e também porque não é assunto que se possa debater de maneira construtiva (a não ser que os debatedores tenham base vivencial semelhante).

Sou quiçá um dinossauro na contramão da história. Mas mesmo um animal em extinção não perde seus instintos mais preciosos.

Morte e Transfiguração 

Richard Strauss provavelmente desdenharia a tese acima. Sua visão de música era muito mais "sensacionista" (para usar, de maneira possivelmente incorreta, um termo de Fernando Pessoa) e muito menos idealista ou filosófica - ao contrário de seu contemporâneo Gustav Mahler. Não por coincidência, há gente que adora Strauss e não gosta de Mahler, e há os que louvam Mahler e não conseguem gostar de Strauss. Há também quem consiga gostar igualmente de ambos. Não é meu caso. A música de Strauss sempre me pareceu pouco interessante, excessivamente grandiloqüente, desnecessariamente difícil, tecnicamente, para o conteúdo. Uma música "gordurosa" por assim dizer. Isso não quer dizer que eu a achava ruim enquanto composição - longe disso - apenas que ela não me dava prazer. Essa é uma distinção importante.

Ontem, porém, eu não apenas gostei da música de Strauss - fui tocado por ela, raptado para dentro do seu próprio universo; morri e me transfigurei junto com seu imaginário protagonista. 

A partir de hoje, tiro o chapéu respeitosamente para Richard. Tenho pela primeira vez vontade de ouvir suas músicas em casa, e não apenas por obrigação de ofício.

Para complicar ainda mais a questão da verdade em música: Strauss compôs Morte e Transfiguração aos 25 anos, antes de ter sofrido sequer uma enfermidade grave; e também não se baseou em nenhuma história ou modelo; a idéia é um produto de sua imaginação e fantasia prodigiosas. Posteriormente, ele forneceu o programa para Morte e Transfiguração, e seu amigo e mentor Alexander Ritter colocou o argumento em versos.

Acho que a surpreendente mudança de gosto que me aconteceu diz muito sobre a qualidade da versão de Morte e Transfiguração realizada anteontem pela OSPA, com a direção/interpretação do regente Nicolas Pasquet. Um concerto digno de encerrar uma temporada de (assim chamados) Concertos Oficiais.

Um colega aposentado, pai de dois músicos da orquestra, elogiou com evidente e emocionado entusiasmo a apresentação, e não escondeu sua surpresa em ouvir a Orquestra soar tão bem tocando uma obra tão difícil. O que rendeu boas risadas nos bastidores pós-concerto. Um outro colega - que é conhecido mais por seu sarcasmo do que por seu entusiasmo - ouvia atentamente, e não se lhe ocorreu nenhuma tirada brochante (como seria esperado), apenas um breve e raro comentário positivo e satisfeito. 

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Violino ou Música?


Não pude deixar de notar que um certo casal de instrumentistas/professores eméritos, importantes formadores de opinião, deixou o Salão de Atos durante o intervalo. Talvez tivessem um compromisso premente; talvez estivessem muito cansados; não sei e não quero julgar. Mas alguém me contou que com eles foram-se embora vários estudantes de música; isso já me parece algo triste (para os professores, que estão dando mau exemplo, e para os alunos, que estão seguindo este modelo). 

Quando vamos ter outra oportunidade de ouvir Morte e Transfiguração em Porto Alegre? Estudantes de música não seriam supostamente jovens ávidos por conhecer e curtir as obras musicais mais geniais e importantes? Ouvir grande música, ao vivo, não é um requisito básico na formação de um músico?

Last but not least: é possível gostar de violino mas não gostar de música?

Lembro-me de uma época - já faz bem mais de uma década - quando tal comportamento era comum. Uma porção significativa do público ia embora após ouvir a peça com solista, especialmente quando este era alguém de grande fama. Essa parte do público não considerava a Orquestra, em si mesma, digna de ser ouvida. A Orquestra era apenas um mal necessário para que aqueles grandes concertos para piano ou violino pudessem ser tocados.

Eu creio que essa época está superada, e que este tenha sido um fato isolado.

Ontem, pudemos pudemos nos maravilhar com o brilho cintilante e a incrível paleta de cores da orquestração de Richard Strauss; surfamos nas ondas oceânicas de sua massa sonora; perdemo-nos nos labirintos de suas harmonias complexas; cantamos jubilosamente suas melodias; morremos e nos transfiguramos; e lavamos a alma.

Quer saber? Azar de quem não ficou. 

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Hoje, mais de um mês após ter publicado este post, me aparece um texto como que predestinado para servir de conclusão e food for thought. Trata-se de um trecho de uma carta escrita em 2011 por um grande músico - Gidon Kremer - na qual ele comunica o cancelamento de sua participação em um prestigioso festival de música clássica. A carta está publicada na íntegra aqui no blog do Norman. E abaixo o trecho escolhido e por mim traduzido. Maiúsculas conforme o original.


"Esta não é mais a "minha" época. Eu a deixo para aqueles que nela acreditam, sejam as platéias ou a nova geração de instrumentistas, que possuem abundantes capacidades para agradar às multidões, mas que estão eles mesmos, freqüentemente, bastante VAZIOS e artisticamente perdidos, correndo atrás da fome de reconhecimento acima da habilidade."




O violino de Gidon Kremer (esq) a serviço da música de Arvo Pärt (dir)

Um comentário:

  1. Muito legal o texto! Que bom que o encontrei/li, mesmo que depois de um tempo
    de sua publicação. Nem tudo está perdido!

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