.
As primeiras frases da música esgueiravam-se, suaves, belas, quase pastorais, um pouco escuras por serem dedicadas exclusivamente aos instrumentos graves de cordas - os violinos só entram a partir do 2º movimento. Logo entrava o coro:
Selig sind, die da Leid tragen,
denn sie sollen getröstet werden
Bem-aventurados os que padecem sofrimentos,
pois eles serão consolados
Estava estabelecida uma atmosfera de grande atenção, contemplação emotiva, de uma doce tensão, por assim dizer, que não seria quebrada durante os cerca de 70 minutos que dura o Réquiem Alemão de Johannes Brahms.
.Johannes Brahms por Eduardo Moctezuma
Então este foi mais um concerto oficial da OSPA. A Igreja da Ressurreição, nas dependências do Colégio Anchieta, nos recebeu pela segunda vez este ano; e revelou-se local mais do que adequado para esta genial obra do repertório sacro. Tirando o frio intenso, que nos fez sofrer muito no ensaio, mas que felizmente não conseguiu espantar o numeroso público. E, afinal de contas, recompensados foram os que aceitaram sofrer um pouco com a baixa temperatura.
A grande estrela do concerto, entretanto, foi o Coro Sinfônico da OSPA.
O grupo vem progredindo de maneira consistente há muitos anos. Lembro-me muito bem da primeira vez que realizamos o Réquiem Alemão, com um grande regente convidado, Kurt Redel. Chegou-se a cogitar o cancelamento do concerto, pois às vésperas do mesmo, o coro mostrava enormes dificuldades para vencer os desafios vocais, melódicos, e harmônicos, da composição de Brahms. Houve um voto de confiança, muito trabalho, e, com grande superação pessoal de todos os envolvidos, conseguiu-se fazer o concerto.
Ano passado levamos o Réquiem 2 vezes, uma em Novo Hamburgo, outra na Igreja São Pedro (se não me engano), aqui em PoA. O coro já não mostrava grande dificuldade "com as notas", por assim dizer. O texto musical estava seguro. Mas havia ainda dificuldades significativas com a afinação, nos trechos não apoiados pela orquestra, e nas complexas modulações brahmsianas. Havia tbém alguma dificuldade técnicas nas passagens agudas; por vezes o naipe de sopranos soava duro, um pouco gritado. Mesmo assim foi um belíssimo concerto, num nível muito superior àquele dos anos 90.
A versão de ontem mostrou um coro quase que completamente seguro, à vontade. Vibrante, reagindo prontamente à direção do regente. Capaz de grandes contrastes dinâmicos. Capaz de se fazer ouvir sobre a orquestra, sem gritar. E aquelas passagens difíceis, que soavam mal ano passado? Não fui capaz de reidentificá-las. Pelo jeito deixaram de ser tão difíceis! Não é pouca coisa para um grupo não-profissional e não-remunerado, que dedica à música "apenas" uma boa parte de suas horas de lazer.
A dedicação dessas pessoas é uma inspiração. Oxalá que mais amantes da música larguem um pouco seus toca-discos e se dediquem a um fazer musical verdadeiro. Isso lhes trará incomparável satisfação e um insight que a experiência passiva de escuta - especialmente associada à reprodução mecânica de música - é incapaz de gerar. Música gravada é música morta. Quem faz música passa a entender um pouco aquilo que os outros só observam de fora. Quem faz música ouve música de uma maneira completamente diferente. Quem faz música adquire um respeito pela música viva e uma capacidade maior de curtir a experiência de escuta.
A dedicação dessas pessoas é uma inspiração. Oxalá que mais amantes da música larguem um pouco seus toca-discos e se dediquem a um fazer musical verdadeiro. Isso lhes trará incomparável satisfação e um insight que a experiência passiva de escuta - especialmente associada à reprodução mecânica de música - é incapaz de gerar. Música gravada é música morta. Quem faz música passa a entender um pouco aquilo que os outros só observam de fora. Quem faz música ouve música de uma maneira completamente diferente. Quem faz música adquire um respeito pela música viva e uma capacidade maior de curtir a experiência de escuta.
Isaac Karabtchevsky, nosso ex-Diretor Artístico, costumava dizer: "nada vem do nada".
Manfredo Schmiedt vem se dedicando a selecionar, treinar, ensaiar seus cantores há mais de 20 anos, enfrentando todas as dificuldades que advém do simples fato de se tratar de um grupo amador: pessoas que vêm e vão, falta de formação musical, só para mencionar duas.
A preparação vocal do Coro está atualmente nas mãos do barítono Ricardo Barpp. O Coro conta tbém com o regente assistente Diego Schuck. Dois músicos diferenciados, de grande talento, com quem já tive oportunidade de trabalhar algumas vezes.
Mas por que isso é importante, afinal?
Porque o grande repertório coral-sinfônico é parte importante da vida musical de qualquer comunidade. Algumas das obras mais geniais pertencem a esse gênero. Quando a voz humana e a palavra cantada se somam ao já complexo som de uma orquestra sinfônica, acontece alguma coisa que consegue transcender tanto a voz, a palavra, quanto a própria orquestra. Essa experiência é maravilhosa.
Porto Alegre e região têm muitos coros, então a música coral é relativamente bem difundida. Porto Alegre tem algumas (poucas) orquestras; desde o desmantelamento da Filarmônica da PUC, somente uma Sinfônica. A música orquestral está presente, ainda que não tanto como gostaríamos, e em constante risco. Entretanto, ouve-se muito pouco do grande repertório de oratórios e outras obras coral-sinfônicas. A paisagem musical fica incompleta. Nós músicos precisamos ouvir e praticar mais esse gênero. Nós instrumentistas de sopro muito particularmente; o coro é o modelo básico segundo qual o conceito de "naipe" deve ser moldado. Os estudantes de música precisam ouvir tbém.
O Réquiem Alemão conseguiu ressuscitar este Blog Brasileiro (que estava catatônico há muitos meses). Valeu, Johannes!
Eu, como um dos cantores mais antigos do coro, quero manifestar minha emoção e extrema satisfação ao ler tuas palavras, Artur, pois essa é a nossa recompensa como músico, solista ou corista: o aplauso verbal junto com o presencial. Muito obrigado. Abraço em Sol Maior. tenor André Luiz Dias Cardoso.;.
ResponderExcluirFico muito grata , muito feliz em saber que o coral ,cada vez mais ,com muito estudo ,paciencia , e principalmente muito amor,estamos melhorando a qualidade musical e vocal,pois somos amadores, não ganhamos nada por isso r$$, mas pra mim não importa ,nunca me importou ,até porque estou a 14 anos, no qual já passei por situações financeiras ruins, e mesmo assim (teimosa) rsrs, não tinha nem p passagem , vinha caminhando quilometros , somente pro ensaio do coral. Isto não tem outro nome , a não ser AMOR!! só o AMOR sustenta o trabalho, dedicação,superação, estudos. Graças ao Manfredo hoje posso dizer q sei o básico da música ,quando ele anunciou o teste, fui e falei c uma amiga professora,, até paguei ela com tickets Restaurante kkkk,pois r$$ não tinha ,mas graças a Deus passei!!:)),então realmente nada vem do nada, e sei q a maioria passou também por alguma coisa,mas superou!! Vou ter um baby agora, logo tirarei uma licença,mas já estou pensando em voltar rsrs, CANTAR É TUDO D BOMMM, AMO MUITO TUDO ISSO!! ABRAÇO A TODOSSSSSS|!! ATT ROMINA - SOPRANO
ResponderExcluirPuxa, fico muito contente com os comentários de vocês. Não elogio para receber elogios, então fiquem bem tranqüilos que tudo que escrevi é verdade (para mim pelo menos)!
ResponderExcluirDei uma ampliada no texto. Leiam de novo se passarem por aqui.
Observações/complementações são muito bem-vindos.
abraço fraterno
a.
Artur,
ResponderExcluirprimeiramente, parabéns pelo excelente texto, fluente e agradável de ler.
Depois, agradeço e fico lisonjeada pelas considerações traçadas sobre o Coro. Não tenho muito a acrescentar ao que já disseste, muito bem dito, sobre as dificuldades pelas quais passamos, sobre a nossa situação e, por fim, sobre o crescimento.
Como cantora, posso dizer que a gente cresce - principalmente se quer e persiste. E isso se deve ao exímio trabalho de cada preparador vocal que nos ensina: para mim, o Decápolis, a Elisa Machado, a Rosana Lofrano, todos maravilhosos. E, por fim, o Ricardo Barpp, nosso atual preparador, a quem devo pessoalmente um salto vocal elevado e percebo um aprimoramento do coro inteiro, digno portanto de agradecimentos e aplausos intermináveis no que se refere a esse concerto. Bem como merece o nosso excelente maestro, evidentemente grande responsável pelo coro, que nos ensina a transformar o som em música.
O significado de tudo que foi escrito no post se intensifica porque quem está dizendo é um músico extraordinário, a quem muito admiro. Elogios vindos de ti são qualificados, respeitáveis, valiosíssimos.
Esse concerto foi especial - o mais concentrado, o mais envolvido, de maior domínio teórico e técnico até agora, sentia de mim e do coro. A ponto de poder estar entregue ao momento e interpretar a música como texto que faz sentido. Agradeço à orquestra por nos permitir realizar essa obra incrível e proporcionar uma experiência transcendental.
A gente, quando canta, apesar das dificuldades materiais infindáveis, sempre está ganhando algo em troca. Ganha-se algo que vai nos acompanhar para o resto de nossas vidas e não poderá ser tirado de nós: a capacidade de cantar e aprimorar isso vira parte do nosso corpo e da nossa alma para sempre.
oi Clarissa
ResponderExcluirobrigado pelo comentário
puxa, ao ler isto que essa parte dele senti que valeu a pena o esforço da postagem (cada "blogada" minha é um pequeno parto):
"Esse concerto foi especial - o mais concentrado, o mais envolvido, de maior domínio teórico e técnico até agora, sentia de mim e do coro. A ponto de poder estar entregue ao momento e interpretar a música como texto que faz sentido"
Pois é.
Obrigado por mencionar os preparadores vocais passados e presentes.
Falando nisso, eu ouvi parte do trabalho de aquecimento antes do concerto. Fiquei muito impressionado com o trabalho do Barpp. Passa um excelente domínio dos fundamentos vocais conectados com os fundamentos musicais/estéticos; consegue ser exigente sem ser mal-humorado e profundo sem precisar "falar difícil". Não é pra qualquer um!
Acabo de visitar teu blog e o achei muito lindo. Vou ler mais.
[ ]
a.
-----
=)
ResponderExcluirPara não pensarem que deixei quem sabe alguém de fora, mencionei os preparadores vocais desde o ano de 2007, que foi quando entrei no Coro!
O trabalho de nosso preparador atual realmente é impressionante.
E obrigada por mencionar meu blog,adoro escrever.Sinta-se à vontade para ler e comentar se quiser =)!