quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Mozart, Beethoven, vida & sotaques



Mozart, Beethoven, vida & sotaques




Fui ao concerto da OSPA hoje apenas como ouvinte. É bem legal fazer isso de vez em quando - prestigiar os colegas e simplesmente ouvir música.

Pouco antes da música começar, um colega me confidencia que os ensaios não chegaram a entusiasmar. Que ao regente/solista convidado faltaria um pouco de “pique”, um pouco mais daquela complexa habilidade de comunicação que os grandes regentes costumam ter: transmitem o que querem transmitir com rapidez e eficiência, seja usando a palavra falada, cantada, a linguagem corporal, ou uma combinação de tudo isso; nunca fazem do ensaio uma palestra, nunca param a música demasiadas vezes e a intervalos muito curtos, nunca deixam dúvidas sobre o rumo traçado e por quê. Eu confio na sinceridade e na capacidade do colega, e por isso mesmo a surpresa foi ainda mais agradável.

Meus ouvidos me disseram coisas completamente diferentes!

Já o primeiro tutti do concerto para clarinete do Mozart brotou com uma sonoridade especial.

foto Augusto Maurer
A sonoridade da orquestra estava diferente de tantas outras vezes em que tocamos este mesmo Mozart. Mais transparente e sutil, e no entanto muito energética. Muito provavelmente o resultado de um meticuloso trabalho na coesão rítmica, na articulação, e na padronização de planos dinâmicos e também de acentos e sforzatti; e de uma feliz escolha de andamentos, que suponho ter levado em conta as ingratas características da sala. (Tudo isso iria render ainda mais frutos mais tarde, na 7ª Sinfonia do Beethoven.)

Uma fotografia delicada, e no entanto com forte contraste.

Lembrei-me de uma frase do Lavard Skou-Larsen em sua primeira passagem pela OSPA como regente convidado. Ele falava de como Mozart tem a ver com Salzburg, e de como o clima de Salzburg é dado a extremos de frio e calor, e como Mozart - ao contrário da imagem fofinha imposta a ele pela kitschização (esse triste e inevitável fenômeno tão bem descrito por Kundera) - contém esses afetos inequívocos, em tudo diversos da paisagem plana, homogênea e monótona que muitas vezes impomos àquilo que chamamos "Classicismo".

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foto Augusto Maurer

A 7ª do Beethoven veio ao mundo na mesma tonalidade de Lá maior do concerto para clarinete do Mozart, e faz com este um par perfeito em um programa de concerto. Mas o interessante é que as virtudes de sonoridade,  articulação, coesão rítmica, balanço sonoro, escolha de andamentos etc. - que se haviam manifestado no Mozart - renderam ainda mais frutos no Beethoven; cuja música tende a ser mais "pontuda", minada de acentos e staccati e silêncios e coisas assim; claramente instrumental, não vocal, na sua essência.

[ Neste momento, o sono e o cansaço batem à minha porta, ao mesmo tempo em que as impressões mais complexas vão se escapando da memória. Não vou entrar em detalhes interpretativos, assim como nem cheguei a comentar o excelente "clarinetismo" do solista/regente François Benda. Isto não é uma crítica de concerto; apenas uma crônica recheada de devaneios ]

Quero ainda mencionar que além de curtir muito a música, que prendeu minha atenção todo o tempo - isso não é pouca coisa - fiquei bastante orgulhoso da "minha" orquestra.

Primeiro, porque lembro muito bem de épocas passadas quando nossos defeitos eram maiores. Essa coesão rítmica que mencionei é um exemplo importante. Uma orquestra pode soar desencontrada, aceitavelmente junto, bem juntinho, e super coesa. Alguns instrumentos tendem a soar "adiantado" enquanto outros tendem a uma certa letargia. Também existem manias individuais. A coesão não se dá por meio de um mero princípio de sincronização matemática; geralmente ela se produz através de um esforço inteligente de coordenação dos eventos a partir de princípios musicais. Por isso uma orquestra tocando coesa soa muito melhor do que qualquer computador executando uma partitura. Lembro de um concerto da OSPA com o grande Leon Spierer dirigindo e tocando a Serenata para cordas de Tchaikovsky - tinha essa qualidade de coesão, as vozes agudas não corriam, as graves não atrasavam, o grupo era um organismo vivo e coordenado. Hoje ouvi algo semelhante, porém no contexto mais complexo da orquestra completa.

Segundo, porque a OSPA começa a mostrar uma capacidade de ser flexível e realizar diferentes interpretações da mesma obra. Lembrei que há cerca de 3 anos tocamos esta mesma Sétima, na mesma desanimadora sala, também com um solista/regente, Ransom Wilson. Foi uma versão convincente também, pelo que me lembro. Mas completamente diferente de hoje. Aquela tinha um pouco de um sotaque alemão antigo - um tipo de "satter Klang", som super cheio, saturado (no bom sentido da palavra). Esta, um sotaque levemente francês (ou seria o sotaque alemão atual - Benda leciona em Berlim - pautado mais pela prática historicamente informada do que pela grandiosidade da era Karajan?). Aquela teve andamentos minuciosamente testados nos ensaios; esta também, porém com um pouco mais de ousadia, reforçada pela agudeza na articulação/emissão; o que beneficiou o Scherzo, por exemplo - ficou mais cintilante, e as frases em pianissimo soaram ainda mais mágicas.

Eu creio que tanto o progresso em aspectos musicais gerais (coesão rítmica p.ex.) como aspectos mais sutis (como a incipiente flexibilidade interpretativa) têm relação direta com o fato de termos tido oportunidades muito mais numerosas do que em outras épocas de trabalhar com diversos regentes convidados, sendo a maioria deles verdadeiros artistas, realmente devotados a fazer música, no interesse do público e da orquestra mais do que da própria "carreira". Trabalhar com excelentes regentes tornou-se regra, e não exceção. Existe um processo participativo na gestão artística por trás disso tudo.


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É possível dizer alguma coisa nova com obras tão repisadas? Sim, é possível. Mas claro, não basta que alguém diga; há que se ter ouvintes  capazes de perceber a vida se manifestando em forma de música no instante presente. Não se trata de uma novidade absoluta, é claro; se trata de detalhes que fazem diferença; e de manejar as circunstâncias - que no caso incluem a acústica árida do Dante Barone. Ao lograr dizer a música de uma maneira especial - com sentido - mesmo a melodia mais batida, mesmo em circunstâncias longe das ideais, adquire um frescor que faz valer a pena ter saído do conforto do lar numa noite tão fria. De bicicleta, no meu caso.

Às vezes essa experiência é tão gratificante que produz o desejo de falar ou escrever a respeito, de tentar compartilhar algo dessa experiência com outras pessoas. O que não é possível - não se pode engarrafar a vida - mas pode ser divertido, nos seus próprios termos.

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