Mozart, Beethoven, vida & sotaques
Fui ao concerto da OSPA hoje apenas como
ouvinte. É bem legal fazer isso de vez em quando - prestigiar os colegas e
simplesmente ouvir música.
Pouco antes da música começar, um colega me
confidencia que os ensaios não chegaram a entusiasmar. Que ao regente/solista
convidado faltaria um pouco de “pique”, um pouco mais daquela complexa
habilidade de comunicação que os grandes regentes costumam ter: transmitem o
que querem transmitir com rapidez e eficiência, seja usando a palavra falada,
cantada, a linguagem corporal, ou uma combinação de tudo isso; nunca fazem do ensaio
uma palestra, nunca param a música demasiadas vezes e a intervalos muito
curtos, nunca deixam dúvidas sobre o rumo traçado e por quê. Eu confio na
sinceridade e na capacidade do colega, e por isso mesmo a surpresa foi ainda
mais agradável.
Meus ouvidos me disseram coisas completamente
diferentes!
Já o primeiro tutti do concerto para
clarinete do Mozart brotou com uma sonoridade especial.
foto Augusto Maurer |
A sonoridade da orquestra estava diferente de
tantas outras vezes em que tocamos este mesmo Mozart. Mais transparente e sutil,
e no entanto muito energética. Muito provavelmente o resultado de um meticuloso
trabalho na coesão rítmica, na articulação, e na padronização de planos
dinâmicos e também de acentos e sforzatti; e de uma feliz escolha de
andamentos, que suponho ter levado em conta as ingratas características da
sala. (Tudo isso iria render ainda mais frutos mais tarde, na 7ª Sinfonia do
Beethoven.)
Uma fotografia delicada, e no entanto com forte
contraste.
Lembrei-me de uma frase do Lavard Skou-Larsen
em sua primeira passagem pela OSPA como regente convidado. Ele falava de como
Mozart tem a ver com Salzburg, e de como o clima de Salzburg é dado a extremos
de frio e calor, e como Mozart - ao contrário da imagem fofinha imposta a ele
pela kitschização (esse triste e inevitável fenômeno tão bem descrito por
Kundera) - contém esses afetos inequívocos, em tudo diversos da paisagem plana,
homogênea e monótona que muitas vezes impomos àquilo que chamamos
"Classicismo".
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foto Augusto Maurer |
A 7ª do Beethoven veio ao mundo na mesma
tonalidade de Lá maior do concerto para clarinete do Mozart, e faz com este um
par perfeito em um programa de concerto. Mas o interessante é que as virtudes
de sonoridade, articulação, coesão
rítmica, balanço sonoro, escolha de andamentos etc. - que se haviam manifestado
no Mozart - renderam ainda mais frutos no Beethoven; cuja música tende a ser
mais "pontuda", minada de acentos e staccati e silêncios e
coisas assim; claramente instrumental, não vocal, na sua essência.
[ Neste momento, o sono e o cansaço batem à
minha porta, ao mesmo tempo em que as impressões mais complexas vão se
escapando da memória. Não vou entrar em detalhes interpretativos, assim como
nem cheguei a comentar o excelente "clarinetismo" do solista/regente
François Benda. Isto não é uma crítica de concerto; apenas uma crônica recheada
de devaneios ]
Quero ainda mencionar que além de curtir muito
a música, que prendeu minha atenção todo o tempo - isso não é pouca coisa -
fiquei bastante orgulhoso da "minha" orquestra.
Primeiro, porque lembro muito bem de épocas
passadas quando nossos defeitos eram maiores. Essa coesão rítmica que mencionei
é um exemplo importante. Uma orquestra pode soar desencontrada, aceitavelmente
junto, bem juntinho, e super coesa. Alguns instrumentos tendem a soar
"adiantado" enquanto outros tendem a uma certa letargia. Também
existem manias individuais. A coesão não se dá por meio de um mero princípio de
sincronização matemática; geralmente ela se produz através de um esforço
inteligente de coordenação dos eventos a partir de princípios musicais.
Por isso uma orquestra tocando coesa soa muito melhor do que qualquer
computador executando uma partitura. Lembro de um concerto da OSPA com o grande
Leon Spierer dirigindo e tocando a Serenata para cordas de Tchaikovsky - tinha
essa qualidade de coesão, as vozes agudas não corriam, as graves não atrasavam,
o grupo era um organismo vivo e coordenado. Hoje ouvi algo semelhante, porém no
contexto mais complexo da orquestra completa.
Segundo, porque a OSPA começa a mostrar uma
capacidade de ser flexível e realizar diferentes interpretações da mesma obra.
Lembrei que há cerca de 3 anos tocamos esta mesma Sétima, na mesma desanimadora
sala, também com um solista/regente, Ransom Wilson. Foi uma versão convincente
também, pelo que me lembro. Mas completamente diferente de hoje. Aquela tinha
um pouco de um sotaque alemão antigo - um tipo de "satter Klang", som super cheio, saturado (no bom sentido
da palavra). Esta, um sotaque levemente francês (ou seria o sotaque alemão atual
- Benda leciona em Berlim - pautado mais pela prática historicamente informada
do que pela grandiosidade da era Karajan?). Aquela teve andamentos
minuciosamente testados nos ensaios; esta também, porém com um pouco mais de
ousadia, reforçada pela agudeza na articulação/emissão; o que beneficiou o
Scherzo, por exemplo - ficou mais cintilante, e as frases em pianissimo soaram ainda mais mágicas.
Eu creio que tanto o progresso em aspectos
musicais gerais (coesão rítmica p.ex.) como aspectos mais sutis (como a
incipiente flexibilidade interpretativa) têm relação direta com o fato de
termos tido oportunidades muito mais numerosas do que em outras épocas de
trabalhar com diversos regentes convidados, sendo a maioria deles verdadeiros
artistas, realmente devotados a fazer música, no interesse do público e da
orquestra mais do que da própria "carreira". Trabalhar com excelentes
regentes tornou-se regra, e não exceção. Existe um processo participativo na
gestão artística por trás disso tudo.
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É possível dizer alguma coisa nova com obras
tão repisadas? Sim, é possível. Mas claro, não basta que alguém diga; há
que se ter ouvintes capazes de perceber
a vida se manifestando em forma de música no instante presente. Não se
trata de uma novidade absoluta, é claro; se trata de detalhes que fazem
diferença; e de manejar as circunstâncias - que no caso incluem a acústica
árida do Dante Barone. Ao lograr dizer a música de uma maneira especial - com sentido
- mesmo a melodia mais batida, mesmo em circunstâncias longe das ideais,
adquire um frescor que faz valer a pena ter saído do conforto do lar numa noite
tão fria. De bicicleta, no meu caso.
Às vezes essa experiência é tão gratificante
que produz o desejo de falar ou escrever a respeito, de tentar compartilhar
algo dessa experiência com outras pessoas. O que não é possível - não se pode
engarrafar a vida - mas pode ser divertido, nos seus próprios termos.
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